sexta-feira, 7 de setembro de 2012

Os Jasmins da Lwena (30). Não sei por onde sair, o esgoto governamental está a fluir.




O dia-a-dia no meu campo de concentração de Luanda
Não sei se conseguirei dormir para de manhã me levantar. Os estertores, estupores das festas que não se decidem nas frustrações da violência sonora, da agressão espiritual, neuronal, do sono inconstante, é irrelevante. Marés negras, petrolíferas de sons intranquilos que enfeitam as infernais noites. Deito-me na ânsia de não ouvir tal mensagem. Até agora nada! Devem estar cansados de tanto beber, amarrados, acostados.
Os pardais já voam sonoros. O meu relógio biológico despertou. Saio da cama, obrigo-me a levantar. Sem água, sem luz, sem nada para manjar. Não sei o que fazer. Disseram-me que na Internet há muita comida. Não sei onde isso fica, como lá chegar, vou procurar. Hei-de qualquer coisa lá encontrar para me consolar.
Ah! Esta negra existência! Porque querem acabar com a minha raça!? Só branco é bonito, e negra feia porque escura escurece o ambiente? Hipócritas! Então que acabem com a escuridão das noites. Façam operação ocular para extrair a cor preta, negra. Depois não verão mais a minha beleza exótica, tropicalíssima. Bem feito! Malandros! Sacanas, é o que são!
E a religião destrói Angola.
Não sei por onde sair, o esgoto governamental está a fluir. Piso nas pedras descalçadas, insegura espero não cair outra vez. Mas que grande merda! Está tudo a ruir, neste mercado das moscas ao ar livre. Comprar qualquer coisa importada não importa. Não produzimos nada nesta nação vendada. Com tanta gatunagem receio ser assaltada. Os que roubaram, roubam, são, serão roubados.
Pedi uns tostões emprestados sem juros que restaram do escrito a lápis desta inconstitucional república. Bolachas, rebuçados, pastilhas elásticas, cigarros, depois gasosa. Bebidas alcoólicas não, bêbado se complica! Foi o que comprei e nas mãos e cabeça carreguei. Cheguei, tive muita sorte, os gatunos estavam colaterais. Peguei numa travessa, limpei-a e nela arrumei a venda. Fiquei meia escondida na gruta de entrada do prédio. Um fausto vizinho, desses da democrática riqueza corrupta, se complicam muito comigo, com a minha pobreza. Que faço lixo, que contraria a sua natureza. São muito desconfiados, medrosos, vivem na insegurança. Da venalidade, imoralidade, dependem de armado segurança. Da ilicitude dos bens arregimentados contra natura.
Ninguém paga a alguém.
Depois do vizinho fausto, os fiscais policiados, sem vencimentos, sem sustentos. Para sobreviverem rapinam-me os mantimentos. Atacam o ponto mais fraco: a mulher indefesa. Protegem-se os empresários, salafrários e outros otários da impunidade fiscal tributários, taxados heróicos impostores das fugas aos impostos. Sem a pena, com plena protecção do poder civil, militar e do nosso Olimpo. Deveres, obrigações, cumprem com os arremedos guturais das ameaças mortais. A minha venda, desvenda algum dinheiro. Porra! Andei bem!
Hoje iludi, venci a fome. Por quanto lamento?! E amanhã, depois… a luz e a água vão me controlar, cortar. Não vou cozinhar sem gás, sem ocupação, não posso pagar. Emprego?! Só para estrangeiros, seguranças e polícias.
No espelho, conservo a pobreza, a leveza da minha beleza. Sempre a me chatear. Querem fiado aviar, depois… para pagar! Ah! Sou muito desavergonhada. Irrompo pelos escritórios deles, antes que saiam com os vencimentos e gastem-nos nas amantes. Exijo tumulto, a minha confusão apresento. Envergonhados, retiram o que me devem, fazem pagamento. As esposas deles copiaram-me. Assediam-nos e vazam-lhes as carteiras. Deixam-lhes penúrias medidas, para umas cervejas bebidas. Com as amantes na mínima condição de fãs, fás sustenidas.
Os estrangeiros controlam-me, mandam-me trabalhar porque os meus libertadores são hábeis no desempregar.
E o meu movimento de libertação chegou, e me libertou: «Agora já não somos mais escravos. Somos finalmente independentes. A terra, o país… tudo é nosso. Somos finalmente livres. Já não precisamos mais de trabalhar. Tudo o que era do colono fica para nós. Nunca mais seremos tristes. Nos nossos rostos reinará para sempre um sorriso de felicidade.»
Insistiram as minhas amigas: as igrejas da macumba é que estão a dar. Caí no chão duma delas mal abençoada. Escavam-nos mel dizimado de uma assentada. Fugi, não quero mais! Porque a magia negra deles exigia das crentes as cuecas, biquínis, tangas, calcinhas do feminino interior, das seivas dos cultos ocultos. Nunca tão poucos Shakas dizimaram tantos bantus.
O meu país, o meu reino, dizem os aventureiros que é tão potente portentoso desenvolvimento, com tanta reconstrução tanto envolvimento. Que é um país que cresceu muito não sei quantos quilómetros quadrados mais. Creio que corromperam as fronteiras dos países vizinhos. Ou desconhecem a superfície da minha nação, do meu reino. Que aumente, diminua, não melhora a minha desgraça. Piora a eterna ditadura das modernas naus desta velha escravatura.
Filhos? Para quê! Para morrerem de fome! E das doenças que ela provoca, e falecerem nos laboratórios hospitalares do nosso Dr. Mengele.
Se compro algo de valor e na minha casa entrar, nada, absolutamente ninguém me vai ajudar. Os gatunos entram, saem, restando o vazio do lugar. A polícia persegue-me com pesadelos, que não posso controlar. Nesta democracia da fome, prefiro, já aderi aos terroristas que me dão comida.
O auge da noite voltou, colou o imorredouro mal. De Spartacus e os seus jovens gladiadores revoltados, nascem da sombra que ensombra a luta contra mais este império da escravidão.
Três decuriões comandam as suas decúrias. Avançam posições e alguns podem cuspir fogo. Bailam-se os lamentos. Que os esfomeados incomodam, se transformam em formigas, moscas, ratos, cães vadios, e morcegos-vampiros. À noite dormem nas cavernas. A fome avança, estende-se, alarga-se. Com ela as epidemias: a cólera é a epidemia dos miseráveis, dos espoliados. São a tristeza de uma trintena de garotos que adquiriram o hábito de irradiar, nascer das ruas, viver nas cavernas nuas. Montam plantão no minimercado, na padaria, no cruzamento da rua movimentada. O plano marcial bem treinado, foi acoplado. Alguns param no meio da rua obrigando os carros a pararem. Ou passar por cima deles, o que não acontece. Têm muitos artefactos para arremessar das suas torres de guerra. Exigem dinheiro estendendo solenemente uma mão. Os condutores não podem evitar a surpresa e escudam-se no torpor da incerteza.
E um nevoeiro muito espesso tomou conta de Angola. A população diz que vem dos palácios alquímicos dos príncipes das trevas da governação. O nevoeiro alastra-se de tal modo que mesmo com as portas e janelas hermeticamente fechadas é inseguro. Os povos aterrorizados fogem e gritam a plenos pulmões: «É a Gripe C!!! é a Gripe C!!!»
Um gladiador de tenra idade descobre algo homólogo. Um carro de bebé abandonado com duas rodas sobradas. Puxa-o e improvisa uma quadriga. Como um gladiador sem arena acelera e risca o brilho de prata do César estacionado. O dono vê o seu bonito automóvel ficar feio. Não ousa contrariar o pequeno Spartacus e os seus modernos escravos. Os interiores dos caixotes do lixo são anotados nas mãos pé-de-cabra. O que resta da civilização sobra para a escumalha. O freguês da padaria traz um saco e sorriso feliz. O pão voa-lhe da mão, roubado por um infeliz. O vizinho Fausto chega. O segurança particular incha-se. Protege-o e à sua sombra.
Está com espingarda de assalto e pistola. Os abutres humanos acabados de saírem dos ninhos vigiam a presa afastados. Fausto está inseguro, caminha, quase aos tropeções, medroso.
Eh! Eh! Afinal o infausto vizinho tem muito medo. Hum, muito armado quando nos diz que não tem medo de nada, nem de ninguém. O vizinho do outro prédio deixa o carro mal estacionado. Corre como perseguido por um vulcão. Vê-se o pânico sair dos braços agitados que parecem querer ganhar asas e alçar voo. Fechem os portões! Genghis Khan está na outra rua a assaltar os prédios! Duas senhoras europeias amaldiçoaram as compras da noite. Dois petizes como pequenos falcões sobrevoam rasantes. Lestos nos hábitos, de arrancarem sacos e carteiras, abandonaram, deixaram a leveza aos movimentos feministas.
Um general não se sabe de que academia militar saído, está perante o dilema de uma batalha perdida. Grita do seu tanque civil: «Socorro! socorro! raptaram o meu filho!» A polícia faz a cena do normalmente fim da peça para averiguações. Seis dos excluídos do Plano C desgarram-se. Estes são mais crescidos, vieram porque a coisa estava a dar. A polícia persegue-os, os jovens elevam-se até um sexto andar. A única saída é encurralarem-se num canto. Lembram-se dos momentos, da angústia que o gato faz ao rato quando salta com a garra fatal. Três rendem-se aos incomensuráveis homens da lei. Os restantes optam pelo suicídio colectivo num voo só de ida com regresso mortal. O chão duro e insensível tal e qual a ditadura, aparou a moleza dos corpos. A jovem faleceu, os dois restaram calamitosos.
Bazei com a venda. Alguns rebuçados e os chinelos facilitadores abandonaram-me. Consegui atrapalhar-me nos degraus. Não queriam acompanhar o meu ritmo. Dançavam outra kizomba. Porra! Refugiei-me na minha tarimba.
Quem mais sofre com tudo isto é o meu coração. A pressão arterial sobe, manifesta-se. Mas o médico tranquilizou-me, enviou-me para os tranquilizantes destes dias sempre infernais: Vamos lá! Vamos lá! Tome-os com um pouco de líquido, água muito clara. Como um dia de sol prometedor, transparente. E ao escurecer dos desejos ao deitar. É um pequeno frasco com reacções químicas para que a noite insista, seja muito escura. Um sem dia, ou será um sem noite? Para que seja fácil suportar os deslizes do regresso à opressão e escravidão. Oh! Como é difícil andar com os pés neste chão.
Que dias tão tristes, apagados. Corromperam o sol!
Angola! Que mais pareces um continente perdido que jamais se encontrará?!
Ah! Mas que epopeia interminável!
Era negra como o vento, o coração, sorrisos, amor céu, sol sem cor e como a água, incolor, agora sou predadora.
As estradas são necessárias para o bem da humanidade. Por aqui são óptimas para o trânsito de exércitos de ocupação. E depois destruídas para que o inimigo não as possa utilizar. E as populações, que mais têm de suportar?
Conservo uma réstia da minha voz melodiosa, cheia do perfume perdido da minha mocidade amordaçada. Nos meus ténues gestos de mãos acorrentadas num infinito grão de areia de bolor. Sentir um pouco de amor (?), que já não resta no meu coração de Jasmim sem odor. Gostava muito de ver o sol nascer. Agora vejo a minha beleza no meu sorriso de tristeza ao entardecer.
Existe sempre um dia. O meu dia, assim como existem anos e silêncios. Que o infinito nevoeiro do tempo se dissipe e se lembre de mim Ah! Ditadores e falsos democratas… existe sempre um dia!
 Imagem: Aléxia Gamito

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