terça-feira, 12 de agosto de 2014

O infortúnio da mana Antónia





«Ah! A mana Antónia não está lá em baixo?» «Não! Foi outra vez com as filhas para o hospital!»
A mana Antónia vende cerveja, vinho, ginguba e banana assada na rua mesmo em frente do prédio onde reside, assim está em contacto íntimo com os seus clientes.
As duas filhas, uma de dezoito e outra de catorze anos têm células falciformes. As características desta doença são: “A anemia falciforme é uma doença genética e hereditária, predominante em negros, mas que pode manifestar-se também nos brancos. É uma doença hereditária (passa dos pais para os filhos) caracterizada pela alteração dos glóbulos vermelhos do sangue, tornando-os parecidos com uma foice, daí o nome falciforme.”
Por isso, é frequente a mana Antónia ir com as filhas para o hospital e lá ficar com elas de sentinela, ir comprar os medicamentos e apoiá-las no mais que for necessário, e o dinheiro amealhado desaparece, não chega para as despesas, e devido a essa doença as meninas estão sempre doentes. Como se não bastasse o seu infortúnio, os fiscais agora muito sem dó nem piedade, passam – passam-lhe a ferro - e de vez em quando carregam-lhe com os produtos da venda e ela fica a rastejar na miséria.
Mas a desdita não se fica por aqui, agora parece que é moda, ela tem óbito atrás de óbito e tem que contribuir. Então lá vai ela fazer o pedido da contribuição, e os kilapi sobem, sobem. O pior é como os pagar depois. Ela diz que todos os dias morre alguém que conhece.
E as desgraças sucedem-se: um irmão de trinta anos tinha relações sexuais com uma vizinha de nove anos já há um bom tempo. O pai da menina montou vigilância, emboscou-se e apanhou-o em flagrante delito. Ele em cima da criança a gozar com tantas adultas que há por aí. Se calhar como não pagava nada, o serviço era gratuito e estava mesmo à mão de semear, bastava dizer à criança, levanta a saia, ou tira o calção. O tarado sexual foi parar na prisão e os polícias pedem bwé de kumbu. E a mana Antónia lá anda na perseguição das kinguilas e a bater de porta em porta. De tal modo que até lhe atiraram, se ela é das Testemunhas de Jeová. Mas as kinguilas não lhe apoiaram, até que ela é muito amiga delas, porque, como elas disseram, o negócio agora está mal, há pouca gente a trocar moeda, quem aparece são os chineses, mas mesmo assim não dá, o negócio está a arrear.
A má sorte não lhe larga, impiedosa como a morte tortura-a à espera que ela se dê por vencida. O seu filho de vinte anos foi apanhado – não é a primeira vez – a fumar liamba no largo, de noite, convencido que assim não daria nas vistas. O azar é que a liamba deixa um cheiro característico, fácil de detectar. E os polícias prenderam-no e agora para o tirar da prisão é mais uma montanha de kwanzas, claro que também aceitam dólares. E outra vez a mana Antónia na correria quase tresloucada – pouco falta, a continuar assim, decerto uma fatal trombose a acometerá e ela sucumbirá – outra vez a bater nas portas dos vizinhos a implorar dinheiro para que o filho escape da prisão.
Agora só está a vender ginguba e banana assada, e para isso contraiu novo empréstimo. O negócio está mesmo muito fraco, e os fiscais fazem a sua aparição relâmpago, caiem-lhe como aves de rapina e espoliam-lhe a ginguba e a banana. Mas ela não desiste porque dos fracos não reza a história.
De vez em quando circulam jovens mwangolés com cães ferozes e aproximam-se dela que fica receosa. É truque para a distraírem e lhe roubarem alguma coisa, preferivelmente o dinheiro, mas como uma vez lhe roubaram a carteira, ela agora esconde o dinheiro na roupa. Quer dizer, pessoa pobre também se assalta. Estamos bem lixados!
Às vezes ela fica no negócio até um bocado mais tarde, e vê meninas crianças a sondarem o ambiente para entrega do corpo. Costumam assediar os seguranças, mas estes ganham pouco e depois de se saciarem e gozarem nos seus tenros corpos, furtam-se ao pagamento, e então o escândalo rebenta com gritaria que se houve muito bem no interior das casas.
Não se sabe o que é que os gatunos queriam da sua casa. Movidos por falsa informação – se calhar não fizeram estudo de viabilidade económica, e muito menos financeira – tentaram assaltar-lhe a casa às vinte e uma horas. Como o marido tem uma pistola, deu alguns tiros para o ar, e os gatunos abandonaram a esfrega, isto é, o campo de batalha, preferindo fazer uma retirada estratégica.
Quando estava balada emprestou vinte mil kwanzas a um benguelense. Passado um mês entregou-lhe uma garrafa de gás de cozinha, dessas dos doze quilos para trazer uma cheia. As horas passaram, os dias também e do benguelense nada. Depois veio-se a saber que ele vendeu a garrafa, apanhou o autocarro e fugiu para Benguela. Até hoje ninguém mais o viu por estas bandas.
Um segurança aflito pediu-lhe dez mil kwanzas que depois lhe pagaria aos poucos do seu vencimento mensal. Mas passados alguns dias o segurança não mais se apresentou ao serviço no seu posto. Encetadas diligências para a sua localização, um outro segurança colega dele disse que alguém o viu algures lá para as bandas de Kilengues na Huíla.
A mana Antónia tinha um terreno muito cobiçado, salvo erro lá para os lados de Viana. Alguém lhe apareceu e fez-lhe uma proposta de venda que ela recusou, porque lá tinha algumas árvores de fruto e hortícolas, as quais lhe reforçavam o seu OGF - orçamento geral familiar, o preço conforme ela indagou era baixo. Mas os amigos da onça encostaram-na na desgraça ameaçando-a que era pegar ou largar, e só tinha duas escolhas: ou vendia o terreno ou ficava sem ele, e a segunda escolha era idêntica à primeira. Ela também tentou mexer-se mas não deu, porque por trás desse muro das lamentações havia peixe muito graúdo e assim se apoderaram do terreno e até hoje ela não viu nada, nem uma moeda.
E num cemitério onde os seus familiares estavam enterrados, também por cima das suas ossadas ergueram casas de luxo. Aliás isso é geral por toda a Luanda, apesar de tanta terra que Angola tem. E em Luanda tudo e todos se amontoam como se Angola não existisse.
Não vale a pena deitar foguetes de contentamento porque o infortúnio sempre nos encontra. A vida é cheia de rasteiras que por mais que as evitemos nelas amiúde nos estatelamos. E quando nos convencemos que somos os mais espertos esquecemo-nos que há sempre alguém que nos dá a volta numa boa. É bem verdade que a vida está muito difícil. Basta ver os estrangeiros que procuram trabalho em Angola, como se fosse possível a sua absorção, mas eles acham que sim. A curto prazo verão o erro que cometeram, e exportar miséria para Angola não é solução, é problema.


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