terça-feira, 26 de agosto de 2014

O PARAÍSO PERDIDO A OCIDENTE (11)












Os clientes aumentam e o Frederico serve novos petiscos. Caracóis, caracoletas e camarão. Instala uma máquina que toca discos com os melhores êxitos do mercado. Para ouvir as músicas são necessárias moedas. A máquina não pára de tocar.
Um rádio técnico amigo convida-me para ir a casa dele ver a última novidade em som Hi-Fi. Coloca um disco com o quinto andamento da nona sinfonia de Beethoven. O efeito sonoro é de espantar. A partir daí a minha alma deixou de ser a mesma. Os coros de Beethoven perseguem-me constantemente como se o céu estivesse infestado de anjos. Mais tarde oiço o Maestro Vitorino afirmar na televisão que Beethoven está para além da própria música. O som invade os nossos lares. Com os Beatles é – pode-se dizer - o despontar de uma nova civilização.

Alguns dos meus amigos tentando seguir a onda da proliferação dos conjuntos musicais que surgem por todo o lado, criam conjuntos amadores à espera de uma oportunidade. Um deles tem manager. Mas apenas um dos componentes se esforça. Toca bateria quase todo o dia a imitar os Beatles. À noite reúnem-se no Frederico para fazer o ponto de situação. Ouvia-os e achava engraçadas as suas pretensões, porque os restantes membros do conjunto passavam o tempo no Frederico a falar de estratégias musicais. Claro que este conjunto e outros não demoraram muito. Creio que é necessário lembrar que John Lennon era um profundo conhecedor do folclore inglês.
As máquinas nos cafés e os equipamentos portáteis musicais iniciam a poluição sonora.

No Café do Frederico acontece uma coisa fora do vulgar. Aparecem os desenhos animados. O coelho, o pato e outras personagens da Warner Brothers, do Walt Disney. Durante poucos minutos de todos os dias o café enchia. Era risada. Uma grande alegria como nunca vi e imaginei. Quando surgiu a série americana de caubóis Bonanza, o café ficava tão cheio que não havia mais lugar para ninguém. Depois o célebre Zip-Zip que originou a que Lisboa parecia uma cidade abandonada aquando da sua emissão porque as ruas ficavam desertas. São nestes momentos que conheço dois personagens que irão influenciar a minha vida.

O Quitério tinha acabado recentemente o curso industrial. Pelas conversas que mantinha via-se que era erudito. Quando tomava a palavra todos o escutavam. Muito simples e humilde depressa despertou a minha atenção. Magro e baixo, com um bigode ligeiramente farto, rosto pequeno e olhos profundos, coxeava ligeiramente devido a um acidente com um tractor em Ataíja, Alcobaça, donde era natural.

O outro, o Mota era muito falador. Apresentava-se sempre impecável de fato e gravata. Alto e muito magro, de olhos largos, sempre barbeado e bem penteado. Sempre a perguntar ao Quitério qualquer dúvida que tivesse. Era muito agressivo e de carácter instável. Mudava de personalidade constantemente. Isso era devido a ser filho único, conforme confessava. Os meus pais exigem muito de mim, lamentava-se. Uma coisa tínhamos em comum: O recenseamento militar e a mobilização para uma das colónias ultramarinas. Era necessário queimar o tempo que faltava.

Nas tardes encontrava o Mota no café com um caderno a escrever. Escrevia muito. Com um chapéu e óculos sempre muito pensativo. Descobri depois que imitava o Fernando Pessoa, até na indumentária. Outros jovens universitários apareciam ocasionalmente, as conversas que mantinham grande parte delas não entendia. Mas com o tempo fui aprendendo muita coisa com eles. O Quitério disse-me que devia ler muitos livros. Como ele ia à Biblioteca Municipal do Alvalade regularmente, disse-me para o acompanhar pois que lá podia trazer três livros gratuitamente e ao fim de quinze dias devolvê-los.

E foi assim que descobri os Grandes Mestres da Literatura Universal. As obras de Jorge Amado li-as quase todas. Mas o autor que mais gostei e creio que li tudo o que publicou foi, William Somerset Maugham. De estilo simples e humilde, muito viajado, com profundos conhecimentos, hábil narrador, honesto, dizia que escrevia para ganhar dinheiro, que conhecia mal a língua inglesa e que o seu êxito se devia aos tradutores. Impressionava-me os desfechos das suas obras. O Fio da Navalha ficou na minha mente para sempre. A Biblioteca Municipal itinerante que funcionava num carro também me permitiu muita leitura, porque aparecia próximo da rua onde habitava.

O Quitério e o Mota com outros intelectuais tiveram a ideia de fundar uma biblioteca que funcionaria na casa de um deles, com jóia inicial e quotas mensais adquiriam livros. Na realidade quem teve a ideia foi o Zé Luís. Era ele o chefe. Destacava-se em tudo. No intelecto e cultura. Um gentleman de educação refinada. Muito educado para quem quer que fosse. Cumprimentava sempre com um leve inclinar de cabeça. Quando surgia todos nos levantávamos para o cumprimentar. Era directo e frontal. Tentei um diálogo com ele, na realidade queria impressioná-lo. Nos jornais lia artigos científicos, cortava-os e guardava-os, especialmente os do Eurico Fonseca. Avancei com Von Braun:
- Você sabe que li um artigo sobre o Von Braun?
Você era o tratamento que ele dirigia a todos. Acho que pretendia manter uma certa distância.
- Ah Sim? Então quem foi ele?
- Sem ele não existiriam foguetões, não seria possível ir à lua.
- Perguntei quem foi ele!
- Um alemão.
- Isso é cultura jornalística.
E como andava sempre com livros debaixo do braço, notei o seu olhar para eles.
- Muitos livros pouca sabedoria. Deixe de ler os artigos científicos nos jornais.
- Mas não tenho dinheiro para comprar livros científicos.
- Por isso mesmo deve ficar calado. Oiça as nossas conversas para aprender alguma coisa.
Envergonhado pedi desculpa e agradeci os conselhos. Entretanto ele perguntou ao Quitério se já tinha, O Fenómeno Humano, de P. Teilhard de Chardin, porque estava muito interessado em conhecer a sua personalidade. Fiquei muito atento à conversa e disse que também gostaria de o ler. Risada geral. Ler esse livro? Se nós não o entendemos quanto mais você. Depois insisti com o Quitério a sós que também gostaria de o ler, e o Quitério tranquilizou-me que só depois deles. Assim foi. 


José Quitério. Facebook



2 comentários:

  1. O Zé Luís, era o José Luís Gaspar que foi um dos grandes impulsionadores da Carta Aberta e da UGT (perdi o contacto há muito tempo).
    Abraço, Gil Gonçalves!

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