Os
clientes aumentam e o Frederico serve novos petiscos. Caracóis, caracoletas e
camarão. Instala uma máquina que toca discos com os melhores êxitos do mercado.
Para ouvir as músicas são necessárias moedas. A máquina não pára de tocar.
Um
rádio técnico amigo convida-me para ir a casa dele ver a última novidade em som
Hi-Fi. Coloca um disco com o quinto andamento da nona sinfonia de Beethoven. O
efeito sonoro é de espantar. A partir daí a minha alma deixou de ser a mesma.
Os coros de Beethoven perseguem-me constantemente como se o céu estivesse
infestado de anjos. Mais tarde oiço o Maestro Vitorino afirmar na televisão que
Beethoven está para além da própria música. O som invade os nossos lares. Com
os Beatles é – pode-se dizer - o despontar de uma nova civilização.
Alguns
dos meus amigos tentando seguir a onda da proliferação dos conjuntos musicais
que surgem por todo o lado, criam conjuntos amadores à espera de uma
oportunidade. Um deles tem manager. Mas apenas um dos componentes se esforça.
Toca bateria quase todo o dia a imitar os Beatles. À noite reúnem-se no
Frederico para fazer o ponto de situação. Ouvia-os e achava engraçadas as suas
pretensões, porque os restantes membros do conjunto passavam o tempo no
Frederico a falar de estratégias musicais. Claro que este conjunto e outros não
demoraram muito. Creio que é necessário lembrar que John Lennon era um profundo
conhecedor do folclore inglês.
As
máquinas nos cafés e os equipamentos portáteis musicais iniciam a poluição
sonora.
No
Café do Frederico acontece uma coisa fora do vulgar. Aparecem os desenhos
animados. O coelho, o pato e outras personagens da Warner Brothers, do Walt
Disney. Durante poucos minutos de todos os dias o café enchia. Era risada. Uma
grande alegria como nunca vi e imaginei. Quando surgiu a série americana de
caubóis Bonanza, o café ficava tão cheio que não havia mais lugar para ninguém.
Depois o célebre Zip-Zip que originou a que Lisboa parecia uma cidade
abandonada aquando da sua emissão porque as ruas ficavam desertas. São nestes
momentos que conheço dois personagens que irão influenciar a minha vida.
O
Quitério tinha acabado recentemente o curso industrial. Pelas conversas que
mantinha via-se que era erudito. Quando tomava a palavra todos o escutavam.
Muito simples e humilde depressa despertou a minha atenção. Magro e baixo, com
um bigode ligeiramente farto, rosto pequeno e olhos profundos, coxeava
ligeiramente devido a um acidente com um tractor em Ataíja, Alcobaça, donde era
natural.
O
outro, o Mota era muito falador. Apresentava-se sempre impecável de fato e
gravata. Alto e muito magro, de olhos largos, sempre barbeado e bem penteado.
Sempre a perguntar ao Quitério qualquer dúvida que tivesse. Era muito agressivo
e de carácter instável. Mudava de personalidade constantemente. Isso era devido
a ser filho único, conforme confessava. Os meus pais exigem muito de mim,
lamentava-se. Uma coisa tínhamos em comum: O recenseamento militar e a
mobilização para uma das colónias ultramarinas. Era necessário queimar o tempo
que faltava.
Nas
tardes encontrava o Mota no café com um caderno a escrever. Escrevia muito. Com
um chapéu e óculos sempre muito pensativo. Descobri depois que imitava o
Fernando Pessoa, até na indumentária. Outros jovens universitários apareciam
ocasionalmente, as conversas que mantinham grande parte delas não entendia. Mas
com o tempo fui aprendendo muita coisa com eles. O Quitério disse-me que devia
ler muitos livros. Como ele ia à Biblioteca Municipal do Alvalade regularmente,
disse-me para o acompanhar pois que lá podia trazer três livros gratuitamente e
ao fim de quinze dias devolvê-los.
E
foi assim que descobri os Grandes Mestres da Literatura Universal. As obras de
Jorge Amado li-as quase todas. Mas o autor que mais gostei e creio que li tudo
o que publicou foi, William Somerset Maugham. De estilo simples e humilde,
muito viajado, com profundos conhecimentos, hábil narrador, honesto, dizia que
escrevia para ganhar dinheiro, que conhecia mal a língua inglesa e que o seu
êxito se devia aos tradutores. Impressionava-me os desfechos das suas obras. O
Fio da Navalha ficou na minha mente para sempre. A Biblioteca Municipal
itinerante que funcionava num carro também me permitiu muita leitura, porque
aparecia próximo da rua onde habitava.
O
Quitério e o Mota com outros intelectuais tiveram a ideia de fundar uma
biblioteca que funcionaria na casa de um deles, com jóia inicial e quotas
mensais adquiriam livros. Na realidade quem teve a ideia foi o Zé Luís. Era ele
o chefe. Destacava-se em tudo. No intelecto e cultura. Um gentleman de educação
refinada. Muito educado para quem quer que fosse. Cumprimentava sempre com um
leve inclinar de cabeça. Quando surgia todos nos levantávamos para o
cumprimentar. Era directo e frontal. Tentei um diálogo com ele, na realidade
queria impressioná-lo. Nos jornais lia artigos científicos, cortava-os e
guardava-os, especialmente os do Eurico Fonseca. Avancei com Von Braun:
-
Você sabe que li um artigo sobre o Von Braun?
Você
era o tratamento que ele dirigia a todos. Acho que pretendia manter uma certa
distância.
-
Ah Sim? Então quem foi ele?
-
Sem ele não existiriam foguetões, não seria possível ir à lua.
-
Perguntei quem foi ele!
-
Um alemão.
-
Isso é cultura jornalística.
E
como andava sempre com livros debaixo do braço, notei o seu olhar para eles.
-
Muitos livros pouca sabedoria. Deixe de ler os artigos científicos nos jornais.
-
Mas não tenho dinheiro para comprar livros científicos.
-
Por isso mesmo deve ficar calado. Oiça as nossas conversas para aprender alguma
coisa.
Envergonhado
pedi desculpa e agradeci os conselhos. Entretanto ele perguntou ao Quitério se
já tinha, O Fenómeno Humano, de P. Teilhard de Chardin, porque estava muito
interessado em conhecer a sua personalidade. Fiquei muito atento à conversa e
disse que também gostaria de o ler. Risada geral. Ler esse livro? Se nós não o
entendemos quanto mais você. Depois insisti com o Quitério a sós que também
gostaria de o ler, e o Quitério tranquilizou-me que só depois deles. Assim foi.
José Quitério. Facebook
O Zé Luís, era o José Luís Gaspar que foi um dos grandes impulsionadores da Carta Aberta e da UGT (perdi o contacto há muito tempo).
ResponderEliminarAbraço, Gil Gonçalves!
Muito grato Quitério.
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