quinta-feira, 12 de julho de 2012

Os Jasmins da Lwena (08)




A ideia com que se fica da actual hereditária governação é a de um treinador, e a população os jogadores. Quer dizer, Angola ainda não é uma nação, é um estádio de futebol. Só que a população continua muito mal treinada. É por isso que Angola acumula um infindável rosário de derrotas a todos os níveis. A derrota da miséria é o exemplo mais ultrajante, apesar das receitas do estádio petrolífero.
Sim, claro que para qualquer país não é muito difícil organizar o campeonato mundial de futebol. Dinheiro não falta, até abunda em demasia. Os milhões gastos nos estádios de futebol recuperam-se rápido. Porque os crentes gastam até ao último centavo, penhoram ou contraem empréstimos para assistirem aos pontapés nas bolas. Agora organizar o campeonato mundial das universidades, ou o campeonato mundial da luta contra a corrupção e a miséria dela resultante, isto sim é imensamente complicado de realizar.


Destaca-se uma grandota que milagrosamente acessou jurisdição universitária. E advoga o Direito Natural:
- Estás feito com os Ufolos, né!? Já vais ver!
E celebrou voz de comando latinizado.
- Argumentum baculinum. Quero dizer: chega de conversa, cacete neles. Vai ser pior que as Termópilas. Minhas queridas… A ELES!!!
E caiu uma chuvada que alagou as caras policiais com chapada. O oficial, o inimigo principal, foi o eleito da discórdia. Desabaram-lhe trovoadas de cacetada e socada. A policiada desprotegida manobrava as mãos, defendia-se por instinto. Apelar às armas virou impossibilidade porque o esquadrão feminino mantinha-se em guarda. Atentamente desarmados pelas corajosas, derreados e aterrados solicitaram forças aos membros inferiores. Ao levantarem para debandarem, a jurisdicional invocou a voz do mulherio da Revolução Francesa:
- Só mais um! Só mais um!
Acobertadas de glória pelo término favorável da batalha no gueto, olhavam sem horizontes para os destroços vendíveis. Escapulidas no recomeço da luta sem alternância, sugeriu-se o inventário dos acontecimentos:
- Não dá para conferir. Num bairro onde ninguém gosta de confusão, repentinamente vem à tona mais um episódio da Guerra de Tróia.
- Nunca se investiu, instituiu tanta fome como nestes tempos badalados, baldados. Muitos guetos sem futuro, como este, serão os formigueiros que alimentarão o reencontro inexorável da Guerra de Tróia. Os esfomeados não temem a morte, ela abastece-os regularmente com cestas básicas aeriformes, de fomes. Está sempre latente nos corações a revolta candente. Será uma grande revolta mundial, juridicamente universal. Quem a impossibilitará de terminar? Não haverá muralhas, fossos, mares que lhe resistam. Multitudinários esfomeados mutados em baratas, moscas, ratos. Afasta-se um, vem dois, três. Assim falará o próximo salmo da nova Guerra de Tróia.
- Deve ser por isso que os romanos não gostavam de Cartago.
O barqueiro Caronte reservava uma barca, sempre preparada para singrar no rio Idas. Levava nas ondas os restos das almas dos ousados sábios ou opositores. Erradicara-se definitivamente qualquer manifestação de sabedoria ou oposição. Os Politburo nasciam sábios, congeniais autorais. Dominavam, fustigavam as epístolas da oposição. Mas os trovadores, exilados internos sem mácula pedravam letras. De chofre aparecia-lhes o barqueiro Caronte, esfregava as mãos de avarento, e inquiria se havia almas para as Idas. Se respondiam, por enquanto ainda não, Caronte impacientava-se.
- Não brinquem com a ludologia. A política não é arte de cartomantes. Daí não advém futuro. Da outra Revolução Francesa que há-de vir, enviam-me muitas almas. Sempre foi assim, sempre assim será.
Os Politburo subiam os degraus do poder sem esforço. No altar cultuavam as vastas sobremesas das multidões sem história. Que de mãos estendidas, flácidas, migalhavam o culto da fome. Tudo é composto de convicção.
- Não há nenhuma revolução que nos vença, que nos convença, ou que nos tire do lugar. Governamos demasiado, porque o tempo só conta enquanto estamos vivos. Governamos mal? Os acólitos aplaudem-nos pela boa governança. Outros povos, especialmente este que dirigimos, os Jingola, envolvem-se, deixam-se levar na felicidade que lhes prometemos nos discursos de fim de ano. Antes viviam na extrema escravidão, hoje estão libertos. É verdade que existem alguns constrangimentos, mas o sorvedouro dos milhares de leis decretadas solucionarão a emancipação dos povos. Finalmente a miséria acabará, atingiremos, bateremos as metas dos recordes do desenvolvimento.
- É?! Acontece que fiz um grande investimento na compra de duas mil barcas e muitos barqueiros para as conduzirem, que correm o risco de perderem os empregos. Não estão a cumprir o contrato, exijo indemnização. Arranjem aí umas epidemias, esquadrões da morte, matanças de criminosos, qualquer coisa… não se sobrevive sem cadáveres.
- Velho Caronte, não escorregue, cadáveres não faltarão. Fique calmo que brevemente tombarão outra vez mil por dia.
- Não acredito em tal maldição! Vão fazer outra revolução?
- Nem tanto a Norte… vamos fazer outra guerra mais devastadora.
- Pendo dessa garantia. Importa-me que cumpram as normas contratuais.
- É verdade que demasiamos a honrar os nossos compromissos, mas quando os lesados nos pressionam, vasculhamos a papelada e accionamos o pagamento. Só trabalhamos debaixo de pressão. Somos como uma locomotiva a vapor.
- É!.. São bons crentes, confiam na divindade que rege o Universo. Naquele que é a origem do cadinho, que nos criou, nos originou. Sois os Politburo que aceitam um só deus mas que seguis as doutrinas do feitiço. Tudo é decidido e explicado pelo feitiço. Concedo-vos prazo de mais de trinta anos para acabarem a contenda. Depois exijo que façais eleições senão…
- Senão o quê?!
- Altercarei a dívida com juros muito pesados. O vosso corpo será mais pesado que o chumbo e não o podereis suportar.
- E perdidos nos encontraremos desarrumados. Malditos gregos que inventaram a democracia e mais as eleições.
Os Jingola acessavam uma emissão de rádio, onde amiúde proclamavam, desabafavam vicissitudes incomensuráveis. Apesar dos esforçados Politburo para a silenciar, ela resistia bravamente. Era o rumo dos sem rumo, assim divinizavam a Rádio Oráculo. Alguns casuístas comparavam-na a Asterix o Minigaulês, que resistia arrumado, aprumado num cantinho sombreado da mafumeira. Os Politburo rabulavam que a Rádio Oráculo era o seu calcanhar de Asterix. Os circuitos dos telemóveis mais íntimos da governação paladinavam que era o calcanhar da função do real.
Jingola propagandeava a epidemia de cólera que militava com muitos aderentes para o interior do reino. Como praga ratada sem navios mercantes. Frechei-me com grande constrangimento: ninguém ousa explicar que a principal causa da cólera… é a fome. A epidemia cadastrou até ao infinito KK de Jingola. A Rádio Oráculo solicitou anuência para implementar o seu feixe hertziano a todos os ouvidos Jingola, para que as populações se informassem, acautelassem, sanassem a epidemia. Os Politburo liminarmente recusaram. Cartaram, selaram, pergaminharam para a Rádio Oráculo.

Reverendíssimas Excelências da Rádio Oráculo:
Havemos um contrato com o barqueiro Caronte. A epidemia da cólera faz as vítimas suficientes, as almas que o barqueiro necessita a contento. Sentimo-nos felizardos. Se o sinal da vossa fé se digladiasse pela rádio e por toda a Jingola se espalhasse, não cairiam vítimas da cólera. Contamo-nos peremptórios firmados, e esse vosso pretenso vento é… não aceite. Alvejamos a certa teologia do querem ir mais longe, para além das redondezas, dos limites de Delfos. As distâncias curtas por vezes tornam-se longas. Permitimos que funcionem devido à frequência democrática que nos foi imposta. Encetámo-la no compêndio das contrariedades.
Estendemos-lhes um dedo, agora querem a mão, depois o corpo. Para convencer que somos democratas anunciámos que se realizariam eleições. Notem bem: que se realizariam… em qualquer momento, em qualquer época. Tudo depende da nossa íntima vontade. Não é a claridade de qualquer oráculo que nos leva ao cume solar e eleições datar. Uma coisa é incerta: o princípio da incerteza eleitoral. Os nossos insignes patrulheiros e marinheiros vigiam atentamente as proas do vosso ecletismo. Pretendem entreabrir a janela da noite escura para a missa de manhã. Fazer muita luz para jorrar nos espíritos, com tanta vela por aí à disposição. Estamos à vela.
Abundantes Saudações Revolucionárias. Jingola, Frimário, Ano II. Ano da Vida Incerta.

Resposta da Rádio Oráculo:
Depois de consultado, o Oráculo revelou-nos:
Parafraseando o ainda perfume opiado, marxista de Bertolt Brecht, acertemos: temos governantes que são corruptos num dia, e são bons. Temos outros governantes que são corruptos durante um ano, e são melhores. Temos outros governantes que são corruptos durante muitos anos, e são muito bons. Mas, há outros governantes que são corruptos toda a vida… esses são os imprescindíveis. Assim como se mutam os climas, também se mudam as tempestades. Tudo é composto de ciclones.
Injectadas saudações. O Directório. Jingola, 9 Termidor. Ano da emissão da nossa Rádio a todo o Reino.
A ponte projectava magnitude louvável. Debaixo, uma multidão de pilares humanos olhava com altitude. No tabuleiro em cima, um jovem mimicava, distendia continuamente as mãos. Chegavam, juntavam-se mais olhares. Davam-se alvitres e palpites. Explicar porquê, ninguém conseguia, sabia. Alguém mais palpiteiro azedava que ele era maluco, drogado. Um alvitreiro tinha a certeza que era um actor que filmava uma cena para a telenovela da TPA nacional, de Jingola habitual. Ele desacelerou os acenos, elevou as mãos ao céu e num sacerdócio pregou a vaidade da verdade:
- Fui um grande lutador… sempre até ao último momento. Não engulo esta vida de miséria, de fome, porque vejo os Politburo a comerem tudo. Até uma ilha pequenina, aquela lá no Futungo, a filha da FAMÍLIA vai comprar (?). Verdadeiramente é agora… isto é que é o verdadeiro colonialismo, o outro era de brincar. Pois… não consigo estudar, não há emprego, fui corrido pelos chineses que acabaram agora de sair das cavernas. Os Politburo desvivem-nos, cortam-nos os anseios, as asas… ó singular desesperança! O barqueiro Caronte espera-me. Não terei ninguém para me colocar as moedas nos olhos.

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