segunda-feira, 9 de julho de 2012

Os Jasmins da Lwena(06)



«Então meu jovem como é que vai a vida na nossa Luanda-Somália? Os police continuam a roubar as coisas?» «Não meu kota, os police estão a roubar as mulheres. Os police mataram os bandidos todos lá no meu bairro. Agora já se pode andar à vontade às dezanove horas.»

- Instalam aparelhos de ar condicionado potentes, os cabos queimam, incendeiam, ficam sem luz. Insistem, os cabos eléctricos da rua, os fusíveis, as casas ardem e ainda insistem
- Dizem que a culpa é do governo.
Moradores em pânico ganham asas, voam, aterram na segurança da rua. Exclamam-se em lamentações:
- A minha ventoinha está a arder!
- A minha aparelhagem foi-se!
- A minha geleira ardeu!
- O meu DVD, acabado de comprar…
- Mentira, você roubou-o!
- E você, faz o quê!
- Ó raça, é fugir, o prédio parece que vai explodir!
Esperam que os bombeiros cheguem, que consigam desengarrafarem-se do trânsito e pouco ou nada restará. Quando chegarem, e a água que trazem acabar, não poderão fazer mais nada, porque não há bocas-de-incêndio. Se existissem, delas não sairia água. Apesar de duas bocas-de-incêndio institucionalizadas: Dum lado o inferno do governo, do outro o inferno da oposição. Há muitos incêndios devido a curto-circuitos. Os Jingola pós-parto são excelentes engenheiros electricistas.

O meu avanço encortina-se por remoinhos de fumo. Alguém pegou fogo a um monte de lixo na tentativa de o eliminar. Dentro de pouco tempo as redondezas serão engolidas pelo fog lixento. A zungueira solitária orienta a carne na banheira solidária. Enxota as moscas, que não se cansam de fazerem ziguezagues. Alguém não está satisfeito com isso e com ela.
- Essa carne está podre, estragada. Vocês compram-na nos armazéns dos sênê (senegaleses) por preço baixo, lavam-na com muito detergente, põem-lhe muito sal, e vendem-na como se fosse chispe.
- Ah!.. Você quer-se complicar comigo, estragar o meu negócio?!
O rádio acompanha-os, zune propaganda plurianual. Cozido principesco, habitual.
- Vamos criar colonatos e compramos o excedente da produção, depois armazenamos em silos para as épocas de crise.
Com certeira, matreira convicção, como anjo da anunciação que parangonava.
- Os preços do petróleo sobem muito. Isso é bom para nós.
E muito mau para nós. – Repicaram os sinos dos celeiros vazios.

A chuvada teimosa aligeirou várias famílias. Expurgadas dos bens, imploravam ao Altíssimo que reparasse as fugas das águas dos canos onde Deus habita. Clamavam por ajuda terrena, do governo da terra. A expectativa atenuava-se com a recomendação, que por agora não era possível fazer nada, porque existiam situações gravosas.
O dirigente terreal solenemente desvenda aos rostos desabrigados a recordação da inundação.
- Antanho aqui florescia magnificente eucaliptal. Um dique providencial, que segurava, desviava, acorrentava a correnteza das águas. Sem apelo arrancaram-nos, das suas carnes postaram negócio. Acenderam carvão para cozinharem e para venderem.
A rabugice da idade anciã sem cidadania também se desabriga.
- A luz da terra prometida tarda. Não podemos conservar comida. Arrancámos só alguns eucaliptozinhos para apoiar a nossa deglutição.
- Os nossos venerandos amigos chineses instalaram os cabos eléctricos. Acabaram o trabalho, os Órfãos roubaram tudo. Acabou-se a celestial iluminação.
- Ser independente é o quê?! Escravos independentes é o quê?! Somos escravos, donos do nosso destino… como os cães.
A informação disseminava a antologia da cólera. Os Jingola sem luz, sem dinheiro para pilhas, não tinham acesso às ondas de Hertz. O tempo colava-se, escoava-se na atenção constante do vender subserviente. A cólera impava pela atenção emprestada. Os direitos de superfície catapultavam longânimes. A principesca informação minoritária aplaudia o defeso contra os desterrados. No fim do dia a fome em sociedade com a morte cobra a dívida, faz o balanço da mortandade. Os números mortais das epidemias, das fomes, deixaram de impressionar. Deixam motivos para a soberba se alegrar. Muitos rios a reinar, muita água, muita gente a morrer de cólera, porque não tem água. Aprofundam-se as caves do poder mas, temos fórmulas para o deter.

Junto do banco de urgência do hospital, as pessoas abandonadas pela independência aguardam pelos seus familiares doentes. Dormem dementes, dependentes do chão, em papelões. Produzem aparas, restos de comida, fezes, urina. É que reconstruíram o hospital, esqueceram-se dos sanitários externos. O administrador desata-se:
- Já lhes disse para saírem daqui. Parece-me que são surdos, ou simulam. Todos os dias nisto… já estou cansado. Não sei que gente é esta, quanto mais lhes falamos, fazem pior. A nossa população não está preparada para viver em sociedade. Nem com um exército de seguranças consigo impor-me.
Ruas com condutas de água rebentadas jazem concorrência desleal aos reservatórios de água instalados no céu. Se acabassem os charcos, lagos imundos, ruas lamacentas, purulentas, as crianças ficariam infelizes, sem estes jardins infantis. Ilhadas, neste campo bem concentradas.
Chove, as pontes paliativas desabam e reinauguram-se. A travessia do negócio é ágil. Quando passar pelo grande esgoto, estarei mais ou menos a meio do caminho até Tule, ali para os lados de Viana.
Algumas zungueiras desesperadas movem a leveza das bacias vazias.
- Ai minha irmã!.. que será de nós. Os lagos onde sai o cacusso… o peixe, estão contaminados com a cólera. Vamos passar fome!
- É mentira deles, querem roubar-nos o negócio.
Disfarçam a tristeza com caudais de risos naturais, sem beneplácito. De repente desencaixam-se, piram-se, entrecruzam-se. A fuga de novos rumos desperta. A tenaz da conspícua lei do Politburo acerca-se. As sobras dos seus panos arrastam-se pelo chão. Na atrapalhação as crianças são atiradas de qualquer maneira para as costas. As bacias e as chinelas parecem fugir-lhes das mãos e dos pés. Uma nuvem de poeira misturada com lixo levanta-se. Parece um ciclone ou um tremor de terra. Fiscais e polícias trazem a aparição da grei triunfal… a perseguição.
Elas usaram um estratagema surpreendente. Discorreram, correram para um lago da chuva. Pararam quando a água lhes subiu por cima dos joelhos. Estavam… como se aguardassem o baptismo no rio Jordão. Os filhos às costas, as bacias nas cabeças, olhavam sorridentes, desafiadoras. Estavam num excelente refúgio. A fiscalidade e os polícias desistiram, sem coragem para a aventura. Receavam baptismo de água impura.
O assédio terminou, elas fizeram algazarra por mais uma vitória conseguida. A guerra da fome é injusta, desigual. Elas voltariam a lutar contra o atrevimento da fome da comida e da ditadura.
A nossa luta continua, com os olhos quase sempre no chão. O que resta das ruas e das armadilhas dos buracos, que parecem ter acontecido uma imensa chuva de meteoritos. Os pés têm que ser muito cuidadosos. Alguns afogaram-se, apareceram cadavéricos nas covas aterradoras.
Uma grande agitação surgiu. Para aí uma dezena de cavalos de Tróia metálicos, cavalgados por guerreiros fortemente armados. Desmontam, assediam as desmuradas casas. Os Jingola imploram o nome do rei… em vão! Fogem das tocas, do desmoronamento marcial. A conspurcada demolição teve efeito, o pretexto de que são necessários hotéis para alojamento de turistas. Habituados ao pavor libertador, há quem escarneça.
- É para alojar os ratos de hotel deles. Caminhamos, outra coisa não se vê.
- Com tanta espécie de ratazanas mundiais aqui apontadas, dá para construir um museu de mastozoologia.
A derrota da democracia segue frígida, sem eleições. Como o cavalo, trota, salta. O cavaleiro medieval instituído catapulta.
Os reinantes emanciparam-se com a produção petrolífera. Para sobreviverem, os Jingola emanciparam as suas esposas. Elas assumiram, dosearam com estoicismo a hercúlea irresponsabilidade do deus protector das lareiras. Heroicamente inventaram qualquer coisa para venderem. Tresmalhadas, conseguem comer algo durante o dia, à noite não. Sacrificadas, obedientes à fome, superaram casebres, compraram geleiras a prestamistas, ventoinhas para silenciar, afastar a mosquitada. Ganharam grande amizade com a fome, para adquirirem o martírio de assistirem à programação da TV Jingola, e a ilusão da paixão sentida das telenovelas. Aparelhagem para dançar, batucar. Dependiam da má vontade, da arrogância, da ganância dos reinantes, do gosto de ver tudo às escuras. Perdiam episódios novelísticos, devido às intermitências voltaicas, e desgarravam-se.
Os Órfãos das guerras do regime apertavam vigilância. Movidos pelo apetite voraz dos pertences de outrem, esgueiravam o ónus das pias Jingola. Eram vãos os protestos. As almas-danadas pedravam.
- Tudo confiscado. Vocês compram, nós roubamos. Não se incomodem com os prantos.
Uma jovem desbloqueia-se.
- Tudo surripiado. Nós compramos, vocês levantam. Calceteiros na terra de ninguém.
Os Órfãos habituados, nascidos, crescidos, desenvolvidos nas guerras da negritude estalinista não debandaram sub-repticiamente. Foram-se como se saíssem dos seus pardieiros. A multidão desacoita-se, amontoa-se às dezenas, centenas. Duas moçoilas desalinhadas requebram-se.
- Foi a polícia do Fouché, do Estaline?
- Sua parva, pensas que estás aonde? Foi a política dos Politburo.
- E há alguma diferença?
Um embriagado e recém-chegado pelos dotes da rapina neocolonialista saúda:
- Não queremos casebres! Não queremos casas de chapas! Não queremos palhotas! Vivam as casernas dos Lares Patriotas! Vivam os da Nova Vida! Vivam os Zangados!
Protestos impopulares são enviados. Uma onda vozeira ecoa pelos retintos labirínticos. As tolas entontecem.
- Não queremos casernas? Não queremos cavernas? Viva o ar milionário da Ilha do Cabo? Viva a má vida? Então querem o quê!?

A foto é a da Nova Vida e das suas centralidades no Lubango, Huíla.

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