domingo, 15 de julho de 2012

Os Jasmins da Lwena (09)



Eis o nevoeiro da Nova Vida. «O Presidente José Eduardo dos Santos convidou os habitantes a transformarem Luanda numa cidade bonita e num bom lugar para viver, onde cada um faça a sua parte, salientando que é possível situar Luanda ao nível de todas as cidades belas e modernas da África Austral e do mundo.»
E via-se claramente um nevoeiro cerrado, também cenário ideal do filme, O Nevoeiro, de Stephen King. Eis a insustentável poluição da morte da matéria-prima da única actividade industrial: os geradores que no domingo, todos os dias já não são domingos, depois de mais um corte de energia eléctrica de doze horas para manutenção. Imaginemos um dia, dois dias, três dias sem luz… a morte não é, será certa. Temos que fazer outra independência porque esta já não presta.


Depois esticou bem a cabeça e os braços, elevou-os e falou para as alturas.
- Ó vós que viveis nos vossos palácios, cercados pelos dias, noites e por seguranças esfomeados. Vigiados por milhares de guerreiros que vos protegem dos medos. Parto para Flégeton… lá nos reuniremos… e rolaremos nas suas ondas de fogo.
A quantia humana parecia um comício habituado, habitado pelo quase poderio meio centenário, abelhas numa colmeia. Os comentadores do quotidiano desfraldam notícias. Esta função é-lhes sumariamente atribuída. Têm o direito de não se calarem.
- Ih, ih, essa telenovela é vinculada demais, não vou deixar que arrefeça.
- Isso é propaganda Carnaval, eleitoral dos Politburo.
- O nosso eterno Politburo não precisa disso… já ganhou as eleições.
O jovem alterou a postura, silenciou para a multidão. Afagou com as mãos a dizer adeus. Depois colou-as no coração, e a pique foi pela aceleração da gravidade afundar-se no abismo eterno, a salvação dos suicidas. No solo um pequeno regato de sangue vermelhava a terra, que colidiu, juntou-se ao lixo, ao juramento dos libertadores imorais que prometeram que seríamos livres. Que jamais nos faltaria liberdade, que as terras seriam só nossas, que não existiriam mais musseques. A colecção humana desagregou-se. Alguns intrigados curiosos não arredaram teimosos. Ninguém atentava para actos suicidas. Andavam na moda.
- Que odisseia Mentor, que imagens espelhadas tão desiguais.
- Verás muito mais. Olha, a morgue principal está cheia de cadáveres desconhecidos. Já apregoam que Caronte, o barqueiro dos Infernos, está midas. Os falsos médicos que os Politburo contrataram, dão grande apoio a Caronte.
É notabilíssima a aptidão que os Jingola têm pela poesia, como uma desgraça colectiva. Na caminhada moldada, distanciada, ouço-os animados de bocejos alargados, pomposos.
- Já correm réditos no teu livro de poemas?!
- Ainda não abastaram angariadores.
- Torna-te fácil, elogia os feitos do Grande Mago do Politburo.
Ou ainda:
- Feitorei quatrocentos poemas, não consigo ludibriá-los, publicá-los.
- Também agonizei mais de mil, poesia dos combates… não sei se estás a ver!
- Hum, hum!
- Se publicar um livro de poesia, serei eleitor da Academia de Letras Politburo. A garinada fartará com lascívia, eu idem. Serei lisonjeado, admirado, invejado pelos meus amigos. Nas igrejas repicarão sinos, porque se pariu um grande escritor avatar. Farei um figurão heráldico. O meu nome literário será gravado na toponímia e a rua onde nasci chamar-se-á Rua do Poeta.
- Ah! … Os poetas Jingola são tão diferentes, como punhais indiferentes.
- Discordo! A nossa poesia é celebrada nos punhais importados, espetados, frustrados de corrupção. Freados mas combativos demoramos convencimentos. Inda não zarpou para lá das Colunas de Hércules de Viana, porque nos falta tempo de limpar o sangue acumulado nas noites destes tempos do rei tão reais.
- Dos pés à cabeça, poesia vitoriosa e derrotas concordantes.
- Até ver!
- A pé firme!
- Sai uma glosa debatida, declamada, motejada do meu vanglorioso corcel bibliotecário.

A nossa negra esperança desmonta
desponta primeiras pernas primaveris infindas, inusitadas
Iluminadas pelo branquear sotaque
do seu biquíni desalmado, armado e equipado
acalorado, transparente de suado
Olhe! Executa ela ansiosa ao redor
talvez que alguém pasmado à solapa
se deleite, a espreite
Nada acontece. Os bajuladores e os novos-ricos
cansaram-se, desregraram-se
na habitual amnésia lacunar, apunhalar
Fugitivos, proscritos desta negra sem esperança

O vento semeava a poeira dos condomínios que mais pareciam catedrais de construções flutuantes. New Deal, projecto nova vida, nova corrida ao homem dourado. Muito dinheiro, muita redundância bancária. Destruir, construir, destruir. Construir uma árvore é mais difícil, é mais fácil construir um prédio. Senti começo de inflamação das conjuntivas. Com apetite fármaco entrei numa farmácia. No fundo do balcão, o farmacêutico conversa molemente com uma cliente. São jovens, parecem disfarçar, namorar. Disfarço-me também e percorro o mostruário até conseguir ouvir a conversa. A jovem activa-se, sacode-se, sobe o tom da voz.
- Não tenho direito ao emprego porquê?!
- Sabe…
- Sei o quê!? Passei nos testes de admissão. Mandaram-me apresentar ao serviço hoje, e aqui estou.
- Você não entende as coisas.
- Repito! Não tenho direito ao emprego porquê?!!
- Sabes… se fosses mais clarinha… terias o emprego.
Ela levantou uma mão na intenção de lhe despedir uma chapada. Vacilou, arreou, ausentou-se espantada. A lacrimejar na porta de saída, esforçou as cordas vocais.
- Essa não! Essa não!
Aviei-me com o medicamento e reencontrei-me na rua. Soltei-me das ilicitudes dos ventos contrários.
- Que Deus nos acuda! Outra vez Nero incendiará Roma e culpará os Cristãos!
Entretanto, no cume de uma antena quatro aves de rapina aguardam maré de rosas. Alguns pombos distraídos voam perto. Então, duas rapinadoras alçam voo, preparam arraial alado. Pairam sorrateiras, os columbiformes detectam-nas e janelam.
As zungueiras em fila indiana espalham fervores nos seus andores. São jovens apetitosas que estudam nas ruas das universidades paralelas. Carregam livros de ouro, líquidos nas suas panelas. Imensas filas de viaturas esperam, desesperam. As estações de fornecimento de combustível são insuficientes. Aproximo-me do grande esgoto.
Nota-se que era uma rua extensa. Está um imenso estendal, lodaçal. Bem nutrido, alimentado sem encargos régios. Bóiam restos de lixo. Colónias de lagartas colonizam, fazem ambiente. A grata entomologia promove o desenvolvimento social das espécies. Um camião recém-chegado estacionou, estatelou com as rodas traseiras ao léu. Conseguiu engolir-se no espólio crateriforme. O seu condutor aprendeu com o rei David, que o abismo chama o abismo A engrenagem parecia um dos rios dos Infernos.
- Meu Mentor… é a versão do Apocalypse Now?
- Não… é o nosso mar sem existência.
- Sem ondas? Sem pescadores?
- A rua foi saneada quatro vezes. Instruíram como se deve morar num prédio. Os locatários fazem ouvidos de Jingola. Os saneadores cansaram-se, abandonaram-nos à sorte. Falta ignição para estas coisas e loisas. São vernáculos, venatórios primevos. Utilizam-se disso como estratagema de vingança. Fruem o prazer mórbido da destruição.
É indubitável que há mais seitas religiosas que campos em Jingola semeados. Infindáveis sementeiras do nosso chefe semeador, sem lavrador. Muita semente, poucos lavradores, muitos importadores. As seitas religiosas não nos ensinam a cultivar campos, promovem, vivem da fome dos crentes. Seitas, igrejas improvisadas mas mais tarde bem abastadas. As vozes, fiéis berradas fazem com que as cabeças e os corações se rompam como porões. Sempre pregadas no Mens divinior, o influxo divino! Lembrei-me disto, porque aproximo-me da casa do meu amigo, Bispo do Imobiliário. É um soberano novo-rico, sócio dos especuladores imobiliários locais e internacionais. Costuma ditar-me a ponte do postulado da sua confraria social. Que as igrejas crescem proporcionalmente à quantidade de analfabetos que fabricamos. Há malas endinheiradas dos e das fiéis dizimadas, aviadas. Muito maná dos obcecados que bem utilizado na agro-pecuária extirparia a fome material do êxodo Jingola. De certeza que chegou, já aqui está. Vou escutá-lo, reverenciá-lo.
O Bispo do Imobiliário orava numa mansão que lhe era extensivamente reservada. Ostensivamente muralhada e reforçada com seguranças das empresas privadas da nomenclatura. Sempre a obrar, alargar espaços. Derrubar muros, casas-casebres e construir outros porque as fronteiras se expandiam. Aproximação da mansão ou intromissão desconhecida era aventura fatal. Algumas almas-danadas tentavam profanar o santuário, mas ocultas câmaras de vídeo sempre vigilantes filmavam-lhes os momentos inglórios do fim num buraco de terra desconhecida, que fortalece os vivos e apodrece os mortos.

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