segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Os Jasmins da Lwena (16). Lembrei-me que os pardais são como as pessoas esfomeadas.



«As ditaduras promovem a opressão, as ditaduras promovem o servilismo, as ditaduras promovem a crueldade: o mais abominável é o facto de promoverem a idiotice.» – Jorge Luís Borges, escritor argentino (1899-1986).

A síndroma Roque Santeiro. Quem será o empresário que conseguirá suportar tanta selvajaria crescente?! Meus senhores! Os seguranças já não aguentam, também estão medrosos. A selvajaria já domina nas ruas, e cada vez será pior. Já não existe população, apenas demónios. E onde está a verticalidade do homo angolensis? Sem ela reforça-se a idolatria da falsa nação e a secagem da árvore que alimenta aquilo que ainda dá pelo nome de povo. Luz, água, casebres e empregos… confiscados. É que os escoltados da governação e estrangeirada já nos invadem as habitações. E isto é a mais pura selvajaria inqualificável. Alguém terá inevitavelmente de sofrer, perecer com as consequências.


Lembrei-me que os pardais são como as pessoas esfomeadas. Que quando têm fome, são válidas quaisquer regras de sobrevivência. Arrastei os vasos para lugar seguro, replantei a hortelã. Para os pardais coloco-lhes regularmente arroz e água. Agora, ela tem condição para alimentar o filho. Deixa-o localizado porque sabe que está seguro. Dá umas voltas, quem sabe… talvez discutir com o marido que ousou abandonar o filho.
Os cães e o vento uivavam nervosos, temerosos da escuridão que agitava os sons do silêncio da noite. Tiros ouviam-se de vez em quando. Era um nocturno melancólico de uma sinfonia fantástica.
Ouvimos o miar de gato na porta da rua seguido de arranhadelas que vão aumentando de tom. Depois o ladrar de cão seguido de dois socos. Ficámos muito atentos, expectantes. Mentor esboça um largo sorriso, levanta-se e abre a porta rapidamente. Depara-se com alguém que traz um mostruário de vendas. Não demonstra surpresa, adivinhara quem chegara.
- Ulisses… não é possível… a venderes telemóveis!? Sempre com astúcia!
- Claro… depois será o disfarce de presidente de um partido político. Exigirei o dinheiro que me é devido, depois financiarei uma armada grega para atacar os Politburo. Vou-lhes lançar setas, onde lhes dói mais.
- Entra, entra, vou procurar algo para te sentares.
Mentor carregou uma caixa de cerveja vazia e Ulisses acomodou-se nela. Mentor abriu latas de sardinha e atum. Gritou para a vizinha que tinha gerador para que trouxesse cervejas frescas porque tinha visitas em casa, e que depois pagaria a conta. Pediu-lhe também para mandar um dos filhos procurar pão. Havia uma mesa pequena funcional que acomodou os convivas. Como a água escasseia sempre, as latas de conserva vazias serviam de pratos. Depois de algumas garrafas terem prestado o aquecimento mental, foram abandonadas no repouso do esquecimento tumular. Mentor aborda Ulisses:
- Ulisses… tu… em terra?!
- O meu nome é Odysseus! Não sei quem foi o parvalhão que inventou esse nome. A língua grega desvalorizou-se? Ah!.. Esses latinos com a mania de esconder a originalidade das civilizações. Copiam-nos e depois apagam-nos. Como se não existíssemos no tempo. Ainda bem que os arqueólogos da verdade nos desenterram, e provam a nossa maturidade. A verdadeira História está agora a ser contada. Os nossos deuses são iguais aos actuais, apenas mudaram de nome. Por mais tentativas que façam, acabam sempre por retroceder às origens. É isso que se chama História.
Interrompi porque achei que algo estava errado.
- Ulisses, não coma mais sardinhas, o atum é mais digesto.
Ele olhou-nos como se fossemos o mistério da natureza humana. Mostrou a melancolia do tempo passado nos barcos errantes que atrofiavam o destino do seu regresso, sempre nos mares traiçoeiros.
- Há trinta anos que ando nesta vida. Tenho imensas saudades da minha terra, da minha Penélope, da minha família. Acho que a Penélope já arranjou outro. Custa-me a acreditar que ela aguente as comichões do luar das noites. As paredes vaginais devem estar derretidas, porque Vénus a contempla. Sinto imensos ciúmes dos venusianos que adulteram Penélope, mas as minhas flechas serão certeiras. Quando chegar destruirei esse maldito planeta. Provocarei o caos no sistema solar. Ah!.. Mas que divindades são estas que separam marido e mulher, que se deleitam horrorizando o amor! Como poderei amar a Deus acima de todas as coisas? Se tenho que escolher entre duas divindades, Deus e Penélope, e como não me é possível amar duas entidades ao mesmo tempo, então escolho, quero amar apenas uma: para sempre amarei e mergulharei no néctar divino que Deus me deu. Não farei nenhum sacrifício, porque Penélope é o meu Deus do amor. Ela pode comer-me, banquetear-se com o meu corpo, com o meu espírito, quando e onde lhe aprouver. Quando se actua verdadeiramente no amor, o corpo e a mente somem-se… deixam de existir… pronto! Passam para uma dimensão desconhecida. Ficam a viver no planeta Etéreo, e dele não desejam sair. O corpo na terra, e a alma ligada por um cordão umbilical tão frágil, que uma qualquer ave bebé no seu primeiro voo indeciso o pode interromper. Amar é o mais poderoso dos sentimentos. É como um império que a qualquer momento rui. Onde há imenso poder, imensa fortaleza devidamente consolidada, os inimigos abundam, espreitam. As muralhas do amor são rompidas, não resistem à tragédia dos laços familiares. O amor está condenado a navegar, a ser transportado, carregado, a viajar no esforço das ondas do mar. E elas batem cada vez com mais força, invadem, perigam a segurança das nações. Advertem que o amor é restituído, deixando o que resta, após a invasão das águas imensuráveis terra adentro. Depois os choros, a tristeza da destruição dos pedaços dos jardins suspensos que aterraram na inundação previsível. As vagas quando chegam trazem ofertas, e no regresso acompanham-se por um grande coro cósmico, esquecem as oferendas, enrolam, e como uma mão gigantesca que se fecha, ainda fazem último esforço com um dedo, e levam para o abissal o feijão da tormenta humana. Onde há muito dinheiro há muita injustiça.
Por momentos o silêncio imperou. A lua vista da única e pequena janela parecia flutuar ao acaso no céu. Teimava em desafiar, mostrar que a noite é efémera, e só lembrada porque lança abraços sonolentos, hipnóticos. Até um guerreiro destemido como Ulisses não resiste aos tombos horizontais, do leito sem espaços conjugais. Ulisses vive momentâneo no sono, no sonho eterno de uma Penélope confrangedora. Mentor, menta a hortelã e aromatiza as palavras:
- Que saudades do meu amigo Ulisses. Vejo-o, sei que é um doce sonho. É mais uma das suas astúcias. És tu Ulisses… agora já entendo porque sentia o barulho agradável das ondas do mar… que nos acompanham com a sua melodia misteriosa desde o nascer até morrer. És tu a origem dos búzios, desse sussurro permanente encostado ao ouvido, e para sempre inalterável.
- Estou farto desta merda de vida e dos humanos, só quero voltar para a minha imortal Penélope.
Via-se que Ulisses se sentia como barco encalhado. Queria navegar mas não conseguia, porque os escolhos em terra não se comparam aos do mar. Estes são previsíveis, e os que estão em terra tem muitos tentáculos imprevisíveis. Veio bom vento a Ulisses.
- A muita idade traz muito cansaço de muitas aventuras. Chegou a hora do descanso. Quando regressar a Ítaca, espero que Penélope não me desgoste ao dizer-me que não tenho direito à pensão de velhice, depois de tanto trabalhar, depois de tanto lutar, guerrear e encher os bolsos dos outros. Isso será uma grande injustiça. Toda uma vida de trabalho… chegar a velho e não ter direito a nada. Mudam-se os tempos? Não! Quem os muda, é para aumentar a fome que antes existia, mas agora não há mares que se lhe comparem. Sempre contra a maré… de modos que não vi nada de novo, de baixo, e à superfície dos oceanos. Uma coisa vi em terra, uma coisa que nunca pensei ver: a maldade e a fome aumentaram tanto, que nem Zeus o pode quantificar. Assim, que Zeus me perdoe, e Apolo também… mas com tanta fome, como é que vou crer e amar o meu Deus? 
Percebia-se que Ulisses enfunava as velas, à espera de ventos de boa feição para fazer-se à vela, na fuga constante do mar para terra, da terra para o mar. Há mar de sargaços, em terra há muitos homens de negócios. Ulisses sabe que o destino do homem é a desumanização.
- As civilizações são maremotos. Emergem e submergem… aparecem e desaparecem. É este o destino trágico do ser humano. Quando nasce é inofensivo. Mais tarde, rodeado pelas forças do mal, instrui-se para destruir. Não faltam malfeitores, professores das ciências diabólicas. Nunca confiem os sentimentos a ninguém, porque nos tempos que correm serão escarnecidos. O ser humano só entende, só responde com a linguagem da violência. Proclama o maldito extermínio da espécie, mas nem todos perecerão. O sábio humanista sobreviverá, depois edificará um mundo novo, livre de malditos. Deixai-os abominar, reinar neste tempo, porque no próximo dilúvio jamais reinarão.
Quando surgir no horizonte uma pomba branca cheia de luz resplandecente, é o sinal para os exércitos das trevas avançarem. Virão com cruzes de sangue nos seus tecidos, e as suas espadas serão invisíveis. Um grande terror cairá sobre as nações, que serão desfeitas, e um grande lago vermelho, da cor do sangue colorirá a superfície da Terra. As crianças correrão ao encontro das suas mães, e não as encontrarão. As aves ficarão tingidas de vermelho, ninguém escapará do fogo divino.
Apetecia-me chamar-lhe, profeta apocalíptico Ulisses, mas contive-me. Receava que a fúria de Aquiles o invadisse. Ulisses dá duas punhadas violentas na mesa. Ouvem-se o regresso dos tiros e os ladrantes cães. Ele ri-se, e fala para as ondas do luar, que de velas desfraldadas inundam a noite:
- Estalajadeiro, a cerveja tremula. Ainda nos falta muito para chegarmos além das profundezas da terra.
Mentor aplaudiu. Reavivou mais cerveja que se movimentou alegremente no semblante dos navegantes. Ulisses refresca-se:
- E nada restará de humanismo, mas a purificação dos eleitos sobreviverá. Eles, os eleitos, serão para sempre os Abençoados, e reinarão para todo o sempre. A vida encurta-se, o amor alonga-se. Não existe, nunca existirá nenhuma espada poderosa que acabe com ele. Os que acreditam conhecerão os segredos do Universo, e neste lugar as moedas de oiro não têm valor. Não é concebível viver num mundo onde o dinheiro prevalece sobre tudo.



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