«As
ditaduras promovem a opressão, as ditaduras promovem o servilismo, as ditaduras
promovem a crueldade: o mais abominável é o facto de promoverem a idiotice.» –
Jorge Luís Borges, escritor argentino (1899-1986).
A síndroma
Roque Santeiro. Quem será o empresário que conseguirá suportar tanta selvajaria
crescente?! Meus senhores! Os seguranças já não aguentam, também estão
medrosos. A selvajaria já domina nas ruas, e cada vez será pior. Já não existe
população, apenas demónios. E onde está a verticalidade do homo angolensis? Sem
ela reforça-se a idolatria da falsa nação e a secagem da árvore que alimenta
aquilo que ainda dá pelo nome de povo. Luz, água, casebres e empregos…
confiscados. É que os escoltados da governação e estrangeirada já nos invadem
as habitações. E isto é a mais pura selvajaria inqualificável. Alguém terá
inevitavelmente de sofrer, perecer com as consequências.
Lembrei-me que
os pardais são
como as pessoas
esfomeadas. Que quando têm fome, são válidas quaisquer regras
de sobrevivência. Arrastei os vasos para lugar seguro, replantei a hortelã. Para os pardais coloco-lhes regularmente arroz
e água. Agora,
ela tem condição
para alimentar o filho. Deixa-o localizado porque
sabe que está seguro.
Dá umas voltas, quem
sabe… talvez discutir com
o marido que ousou abandonar
o filho.
Os cães e o vento uivavam nervosos,
temerosos da escuridão
que agitava os sons
do silêncio da noite.
Tiros ouviam-se de vez
em
quando. Era
um nocturno melancólico de uma sinfonia fantástica.
Ouvimos o miar de gato na porta
da rua seguido de arranhadelas que vão aumentando de tom.
Depois o ladrar
de cão seguido de dois
socos. Ficámos muito
atentos, expectantes. Mentor esboça um largo sorriso, levanta-se e abre a porta
rapidamente. Depara-se com alguém que traz
um mostruário
de vendas. Não
demonstra surpresa, adivinhara quem chegara.
- Ulisses… não
é possível… a venderes
telemóveis!? Sempre com
astúcia!
- Claro… depois será o disfarce
de presidente de um
partido político.
Exigirei o dinheiro que
me é devido,
depois financiarei uma armada grega para atacar os Politburo.
Vou-lhes lançar setas, onde
lhes dói mais.
- Entra, entra, vou procurar
algo para te sentares.
Mentor carregou uma caixa
de cerveja vazia e Ulisses acomodou-se nela.
Mentor abriu latas
de sardinha e atum.
Gritou para a vizinha
que tinha
gerador para que
trouxesse cervejas frescas porque tinha visitas em casa, e que depois pagaria a conta.
Pediu-lhe também para
mandar um dos
filhos procurar
pão. Havia uma mesa
pequena funcional
que acomodou os convivas.
Como a água
escasseia sempre, as latas de conserva vazias serviam de pratos.
Depois de algumas garrafas
terem prestado o aquecimento mental, foram abandonadas no repouso
do esquecimento tumular.
Mentor aborda Ulisses:
- Ulisses… tu…
em terra?!
- O meu
nome é Odysseus! Não
sei quem foi o parvalhão que inventou esse
nome. A língua
grega desvalorizou-se? Ah!.. Esses latinos com
a mania de esconder a originalidade das civilizações.
Copiam-nos e depois apagam-nos. Como se não
existíssemos no tempo. Ainda bem que os arqueólogos
da verdade nos
desenterram, e provam a nossa maturidade. A verdadeira História
está agora a ser
contada. Os nossos deuses
são iguais
aos actuais, apenas mudaram de nome. Por mais tentativas
que façam, acabam sempre
por retroceder
às origens. É isso
que se chama
História.
Interrompi porque
achei que algo
estava errado.
- Ulisses, não
coma mais
sardinhas, o atum
é mais digesto.
Ele olhou-nos como
se fossemos o mistério da natureza
humana. Mostrou a melancolia
do tempo passado
nos barcos
errantes que atrofiavam o destino
do seu regresso,
sempre nos
mares traiçoeiros.
- Há trinta anos
que ando nesta vida.
Tenho imensas saudades da minha terra, da minha Penélope, da minha
família. Acho que
a Penélope já arranjou outro. Custa-me a acreditar
que ela
aguente as comichões do luar
das noites. As paredes
vaginais devem estar derretidas, porque Vénus a contempla. Sinto imensos
ciúmes dos venusianos que adulteram Penélope, mas
as minhas flechas
serão certeiras. Quando
chegar destruirei esse
maldito planeta.
Provocarei o caos no sistema solar. Ah!.. Mas que divindades são
estas que separam marido
e mulher, que
se deleitam horrorizando o amor! Como poderei amar a Deus acima de
todas as coisas? Se tenho que escolher entre duas divindades,
Deus e Penélope, e como
não me
é possível amar
duas entidades ao mesmo
tempo, então
escolho, quero amar apenas uma: para sempre amarei e mergulharei no néctar
divino que Deus me deu. Não farei nenhum
sacrifício, porque
Penélope é o meu Deus
do amor. Ela
pode comer-me, banquetear-se com o meu corpo, com o meu espírito, quando
e onde lhe
aprouver. Quando se actua
verdadeiramente no amor, o corpo e a mente
somem-se… deixam de existir… pronto!
Passam para uma dimensão
desconhecida. Ficam a viver
no planeta Etéreo,
e dele não desejam sair.
O corpo na terra,
e a alma ligada
por um
cordão umbilical tão
frágil, que
uma qualquer ave
bebé no seu primeiro
voo indeciso o pode interromper.
Amar é o mais
poderoso dos sentimentos.
É como um
império que a qualquer
momento rui. Onde
há imenso poder,
imensa fortaleza
devidamente consolidada, os inimigos abundam, espreitam. As muralhas
do amor são
rompidas, não resistem à tragédia dos laços
familiares. O amor
está condenado a navegar, a ser transportado, carregado,
a viajar no esforço
das ondas do mar.
E elas batem cada
vez com
mais força,
invadem, perigam a segurança das nações. Advertem que
o amor é restituído, deixando o que resta, após a invasão das águas imensuráveis
terra adentro.
Depois os choros,
a tristeza da destruição
dos pedaços dos jardins
suspensos que aterraram na inundação previsível. As vagas
quando chegam trazem ofertas, e no regresso
acompanham-se por um
grande coro
cósmico, esquecem as oferendas, enrolam,
e como uma mão
gigantesca que
se fecha, ainda
fazem último esforço
com um
dedo, e levam para
o abissal o feijão da tormenta humana.
Onde há muito
dinheiro há muita injustiça.
Por momentos
o silêncio imperou. A lua
vista da única
e pequena janela
parecia flutuar ao acaso
no céu. Teimava em
desafiar, mostrar que a noite é
efémera, e só lembrada porque lança abraços sonolentos,
hipnóticos. Até
um guerreiro
destemido como
Ulisses não resiste aos tombos horizontais,
do leito sem
espaços conjugais. Ulisses vive momentâneo no sono,
no sonho eterno
de uma Penélope confrangedora. Mentor, menta a hortelã
e aromatiza as palavras:
- Que saudades do meu
amigo Ulisses. Vejo-o, sei que é um doce sonho. É mais uma das suas
astúcias. És tu
Ulisses… agora já
entendo porque sentia o barulho agradável
das ondas do mar…
que nos
acompanham com a sua
melodia misteriosa desde
o nascer até morrer.
És tu a origem
dos búzios, desse sussurro
permanente encostado ao ouvido, e para sempre inalterável.
- Estou farto
desta merda de vida e dos humanos, só
quero voltar para a minha imortal
Penélope.
Via-se que
Ulisses se sentia como barco
encalhado. Queria navegar mas não
conseguia, porque os escolhos em terra não se comparam
aos do mar. Estes
são previsíveis, e os que estão em terra tem muitos tentáculos imprevisíveis.
Veio bom
vento a Ulisses.
- A muita idade traz muito
cansaço de muitas aventuras.
Chegou a hora do descanso.
Quando regressar
a Ítaca, espero que Penélope não me desgoste
ao dizer-me que não
tenho direito à pensão
de velhice, depois de tanto trabalhar, depois de tanto
lutar, guerrear e encher os bolsos dos
outros. Isso
será uma grande injustiça.
Toda uma vida
de trabalho… chegar a velho e não ter direito a nada. Mudam-se os tempos?
Não! Quem
os muda, é para
aumentar a fome
que antes
existia, mas agora
não há mares
que se lhe
comparem. Sempre contra
a maré… de modos
que não
vi nada de novo,
de baixo, e à superfície
dos oceanos. Uma coisa
vi em terra,
uma coisa que
nunca pensei ver:
a maldade e a fome
aumentaram tanto, que
nem Zeus o pode quantificar.
Assim, que
Zeus me perdoe, e Apolo também… mas com tanta fome, como é que vou crer e amar o meu Deus?
Percebia-se que
Ulisses enfunava as velas, à espera de ventos de
boa feição para
fazer-se à vela, na fuga
constante do mar
para terra, da terra para o mar.
Há mar de sargaços,
em terra há muitos homens
de negócios. Ulisses sabe que o destino do homem é a desumanização.
- As civilizações
são maremotos.
Emergem e submergem… aparecem e desaparecem. É este
o destino trágico
do ser humano.
Quando nasce é inofensivo.
Mais tarde,
rodeado pelas forças do mal, instrui-se para destruir. Não faltam malfeitores, professores
das ciências diabólicas. Nunca confiem os sentimentos
a ninguém, porque
nos tempos
que correm serão
escarnecidos. O ser humano
só entende, só
responde com a linguagem
da violência. Proclama
o maldito extermínio
da espécie, mas
nem todos
perecerão. O sábio humanista
sobreviverá, depois edificará um mundo novo, livre de malditos. Deixai-os abominar,
reinar neste tempo,
porque no próximo
dilúvio jamais
reinarão.
Quando surgir no horizonte uma pomba
branca cheia
de luz resplandecente,
é o sinal para
os exércitos das trevas
avançarem. Virão com cruzes de sangue
nos seus
tecidos, e as suas
espadas serão
invisíveis. Um
grande terror
cairá sobre as nações,
que serão
desfeitas, e um
grande lago vermelho, da cor do
sangue colorirá a superfície da Terra. As crianças
correrão ao encontro das suas mães, e não as encontrarão. As aves
ficarão tingidas de vermelho, ninguém
escapará do fogo divino.
Apetecia-me chamar-lhe, profeta
apocalíptico Ulisses, mas contive-me.
Receava que a fúria
de Aquiles o invadisse. Ulisses dá duas punhadas violentas na mesa. Ouvem-se o regresso
dos tiros e os ladrantes cães. Ele ri-se, e fala
para as ondas
do luar, que
de velas desfraldadas inundam a noite:
- Estalajadeiro, a cerveja
tremula. Ainda nos
falta muito
para chegarmos além
das profundezas da terra.
Mentor aplaudiu. Reavivou mais
cerveja que
se movimentou alegremente no semblante dos navegantes. Ulisses refresca-se:
- E nada
restará de humanismo, mas a purificação
dos eleitos sobreviverá. Eles, os
eleitos, serão para
sempre os Abençoados, e reinarão para todo o sempre. A vida
encurta-se, o amor alonga-se. Não existe, nunca
existirá nenhuma espada poderosa que
acabe com ele.
Os que acreditam conhecerão os segredos do Universo,
e neste lugar as moedas
de oiro não têm valor.
Não é concebível
viver num mundo onde
o dinheiro prevalece sobre
tudo.
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